As Obas da família Kuniyoshi
Por Suzana N K Tachibana
Oba é uma palavra okinawana carinhosa que significa avó. Geralmente as Obas okinawanas são mulheres fortes, dominadoras mesmo, que participam ativamente das decisões da família e seus filhos devem escutar a vida toda.
O meu pai tinha uma lavoura de café e a Oba (sua mãe) que morava conosco, ajudava a cuidar do cafezal, da horta, dos porcos, das galinhas, e de algumas tarefas domésticas. De fato, ela nos educava e passava muito sermão todos os dias. O pai era uma pessoa calma, e acabava escutando os seus sermões. A mãe completava o trio de educadores mas ela é muito tímida e tinha receio de falar algo que a aborrecesse, no entanto a Oba geralmente entendia a mãe e dizia apontando para o pai que os homens é que não entendem as mulheres! Dizia tudo em língua japonesa para as crianças ou língua okinawana para os adultos. Ela sempre estava muito atenta às leis da natureza e eu também me espantava com a sua sabedoria, porque de vez em quando ela olhava ao redor muito séria e decretava; o vento mudou de direção, vai chover! e batata! realmente chovia. A Oba era também uma pessoa que gostava muito de leitura e às vezes me relatava o que tinha terminado de ler. Certa vez ela me contou que leu no Reader’s Digest (Seleções em língua japonesa) a terrível história do carrasco nazista Adolf Eichmann (levei muito tempo para entender quem era) que foi localizado na Argentina e levado a julgamento em Israel. As irmãs da nossa Oba diziam que dentre as irmãs, ela era a mais inteligente.
Desde pequena, sempre ouvi a história de que a nossa família precisava de filhos homens. Eu nasci, depois a segunda, a terceira ... uma menina depois de outra até a sétima. A cada menina que nascia, depois de um período, se a mãe demorava um pouco pra engravidar de novo, vinha uma carta da Naha no Oba, de Okinawa para a Oba que morava conosco, pedindo que o casal não desistisse, que era muito importante gerar um filho homem e depois mais um filho homem, ou seja, não somente um filho homem, mas dois filhos homens. Pode parecer confuso, mas isto faz parte da cultura de Okinawa; determinar quem vai cuidar do butsudan (oratório na língua japonesa) ou guansu (na língua de Okinawa).
No guansu toda a família reza aos ancestrais e o costume lá na ilha é de ficar sob os cuidados do filho mais velho, passando de geração em geração, sempre para o filho mais velho. Em Okinawa, o oratório geralmente fica na sala das casas; porém deste outro lado do planeta, talvez para não chocar os vizinhos, o da nossa família fica num quarto. No guansu da família, há as ihai, tabuletas com os nomes de cada um dos ancestrais, desde o bisavô Ushi e a bisavó Nabe Kuniyoshi que também era uma Oba mas respeitosamente a chamávamos de Obaassan.
Naha no Oba era viúva de uma pessoa responsável por um guansu de mais de 10 gerações da família Kuniyoshi. Ela era cunhada do bisavô Ushi Kuniyoshi, explicando melhor, o seu marido era o irmão mais velho de Ushi. Ao iniciar a 2ª Grande Guerra em Okinawa, a Naha no Oba não teve dúvidas; para proteger os quatro filhos homens, tomou a decisão de embarcá-los em um navio da Cruz Vermelha. No meio da guerra, numa batalha em alto mar, este navio foi tragicamente afundado e todos os jovens pereceram.
A família compreendendo que aquele importante guansu não tinha mais herdeiros, constatou que caberia ao meu pai, único filho do filho mais velho de Ushi, dar existência a dois filhos homens. Segundo a cultura de Okinawa também, como não seria cumprido de maneira direta a transmissão do guansu, caberia ao segundo filho receber este oratório de mais de 10 gerações porque o primeiro filho iria herdar o guansu do bisavô Ushi.
Quando nasceu o meu irmão, o oitavo, um filho homem, a Oba que morava conosco, ao receber essa notícia, num impulso de euforia, dançou um alegre kachashi (dança okinawana de confraternização) deixando aflorar um sentimento de felicidade por muitos anos reprimido, e toda a família, tios e tias e os parentes em Okinawa ficaram em festa, por algum tempo. Entretanto, com o meu irmão ainda bem pequeno, a minha mãe vivenciou um período de agruras porque ficou seriamente doente, estava com tuberculose. A história do segundo filho ainda pairava no ar, então quando a mãe já estava curada, novamente começaram a vir cartas da Naha no Oba pedindo que meus pais tentassem mais uma vez, no que foi acatado.
Na ocasião em que a mãe estava grávida pela nona vez, ela recebeu a visita de um Yutá enviado pelos parentes de Okinawa. Yutá é uma palavra okinawana para um xamã ou uma pessoa sensitiva que dá conselhos e orientações às pessoas que os procuram, faz conexões entre os ancestrais da família e seus descendentes e é um elo entre o mundo natural e espiritual. Este xamã cuidadosamente tocou no ventre bem arredondado da mãe e enunciou: vai ser um menino! Ele equivocou-se totalmente e nasceu mais uma menina.
Assim adentramos no século XXI, com histórias e tradições de nossos ancestrais onde tentamos manter alguns costumes no que cabe ao mundo atual e no que não é possível dar continuidade, simplesmente só difundimos aos novos descendentes como eram essas práticas. Antigamente eram muito comuns famílias numerosas de imigrantes e hoje em dia deve ser raríssimo ver famílias orientais com muitos filhos em idade escolar.
Aceitamos, com o passar dos anos, que os ancestrais incluindo o pai que já está entre eles, consentem naturalmente as transformações do mundo e as mudanças no comportamento de seus descendentes para que todos possam prosseguir em harmonia espiritual.
Fontes de consulta:
https://www.okinawabrasil.com.br/sucessao-familiar
https://www.mundook.com.br/kaminchu/
https://www.okinawabrasil.com.br/munchu
https://www.kyuukeimagazine.com/2020/02/tradicao-de-okinawa-minha-avo-uma-yuta.html
http://musicaokinawana.blogspot.com/2010/07/danca-kachashi.html