Herdando o “Chimugukuru”

Nota introdutória:
Este texto foi originalmente escrito em japonês, em outubro de 2019, para minha aplicação à Bolsa Kenpi Ryugaku de Okinawa. Por esta versão aqui estar em português, tive mais liberdade na escrita, então acabei o modificando bastante, inclusive acrescentado mais informações. Além disso, a família Kuniyoshi teve uma grande perda durante o carnaval deste 2020. Meu avô Shinichi Kuniyoshi faleceu em decorrência de um câncer, contra o qual lutou bravamente nos seus últimos anos de vida. Acho que o texto ganha agora um novo caráter, de homenagem ao meu avô. Créditos a toda minha família, professores e amigos, especialmente à tia Tereza que, lá no começo da escrita do texto em japonês, me deu ideias e me cedeu seu conhecimento que só agregou a este pequeno trabalho.

Herdando o “Chimugukuru”
Eu, como sansei, descendente de Okinawa, não tenho grandes referências de costumes, crenças e cultura dessa minha raiz. Aprendi palavras do uchinaaguchi tais como “akisamiyo!” ou “gatimaya”, mas nunca vi elas serem usadas no cotidiano. Isso me faz perceber como de fato a cultura é uma criação humana extremamente frágil, condicionada e moldada por um ambiente, muitas vezes só fazendo sentido num contexto específico.  

A comunidade uchinanchu de Curitiba, sabendo da importância de se manter viva a cultura okinawana, fundou a Associação Okinawa Kenjinkai de Curitiba (AOC), em 2006. Desde então, diversas atividades têm ocorrido ao longo desses 14 anos. 

Atualmente, grupos de sanshin, Okinawa buyo e coral acontecem na esfera da associação. Contudo, à medida que o tempo passa, a geração vai se configurando cada vez mais de sansei e yonseis, e assim, vamos nos distanciando cada vez mais da essência do ser uchinanchu. Em Curitiba, por exemplo, apenas dois membros do Kenjinkai são isseis. Além disso, poucos jovens participam da nossa associação. É preciso realizar atividades que lhes interessem, mas o que interessa aos jovens? Nem eu sei dizer, mas meu palpite é que por estarmos numa era de abundância e variedade de informação, nossas vidas são frequentemente moldadas. Consequentemente, todos possuem suas próprias narrativas e interesses, ao mesmo tempo que crescem longe desse contexto de imigração e, assim, gradativamente a história dos nossos antepassados vai se esvaindo. 

Viver no meio de toda essa pluralidade dificulta a busca pela minha identidade. Perder-se soa quase como natural. Então, junto desta necessidade de me encontrar que vou investigando minha ascendência. Me identifico com a fala da prof.ª Monica Okamoto, que diz que de acordo com um estudioso americano da década de 40, a terceira geração, que não sofreu as questões da imigração, tende a restaurar a cultura de seus antepassados.

Eu sou sansei. Enquanto minha família paterna, Nakashima, é de Saga, a materna, Kuniyoshi, é okinawana. A primeira vez que ouvi falar sobre “Okinawa”, acredito que eu tinha uns 12 anos. Foi naquela época que a AOC nasceu, e, consequentemente, meu interesse nesse arquipélago ancestral. Na festa de fundação, houveram diversas apresentações culturais. Entre elas, a filial paulista do grupo de tambores okinawanos Ryukyu Koku Matsuri Daiko se apresentou já no encerramento do evento com o tradicional kachaashii. Foi incrível de tal maneira que vários jovens que estavam ali se interessaram, a ponto de quererem abrir uma filial curitibana. Um ano depois era fundada a filial Curitiba, da qual faço parte até hoje – apesar de ter receado ir ao primeiro treino, tendo ido por compulsão da minha mãe.

Passado algum tempo, já em 2011, participando do programa de intercâmbio Junior Study Tour (atual Uchina Junior Study), fui pela primeira vez à Okinawa. Dentro da família Kuniyoshi, eu tive o privilégio de ter sido o primeiro, depois dos meus avós, a conhecer a nossa terra natal originária. Minha mãe foi a segunda. Lá, conheci vários descendentes de todo o mundo, formando amizades com latino-americanos e, consequentemente, aprendendo a falar um pouco da língua espanhola.

Essa ida à terra das minhas origens me abriu portas. Lembro de retornar muito animado aos treinos do Matsuri Daiko, participando mais e assumindo responsabilidades dentro do grupo. Sabendo falar espanhol, também pude realizar outro intercâmbio, agora acadêmico, para a Bolívia, no qual pude visitar as Associaçõs Okinawa Kenjinkais da Bolívia e do Perú, bem como o trio de colônias de uchinanchus próximo de Santa Cruz de la Sierra, chamadas redundantemente de “Okinawa 1, 2 e 3”.
Portanto, me comparando com antes de toda essa minha trajetória de descobrimento da minha ancestralidade, com certeza me tornei outra pessoa. Conhecendo várias culturas, compreendi a multiplicidade de maneiras de se viver que existem neste mundo.

Como fruto da minha jornada investigativa, tenho como exemplo meu projeto de graduação em arquitetura e urbanismo. Desenhei um kaikan, uma sede, para a AOC, por ainda não possuirmos um espaço próprio (até hoje). Apesar de o projeto ter ganhado proporção irrealista, alguns pontos me satisfizeram. Entre eles, o seu nome. Durante pesquisa, lendo o livro “Okinawa: uma ponte para o mundo”, do jornalista e escritor uchinanchu José Yamashiro, intitulei meu trabalho de “Curitiba Gusuku”, em referência às fortalezas seculares do reino de Ryukyu. Sei que a realidade financeira das associações nikkeis não é para se esbanjar, mas quantos kaikans traduzem em sua arquitetura a cultura que abrigam?

Explorando um pouco mais as minhas raízes, as figuras dos ojiis e obaas (avôs e avós, respectivamente) acabam constituindo um importante papel nessa conexão Brasil-Japão. Minha avó, chamada Tiyo, é nissei. Meu avô, que se chamava Shinichi, era issei. Juntos, criaram nove filhos. Não consigo imaginar o quão duro deve ter sido. Shinichi-ojiisan nasceu em Kochinda-chou, mas cresceu em Ginoza-son, que fica na região central da ilha principal de Okinawa. Aos 17 anos, veio ao Brasil, se assentando na cidade de Cambará, Paraná, onde viveu até seus últimos dias. Quando ele e minha avó completaram seus 50 anos de casados, um livro foi escrito pela família, tendo uma parte em japonês e outra, mais enxuta, em português. Lendo apenas a parte em português, pude conhecer um pouco mais sobre a história da Kuniyoshi-ke, além da longa jornada que foi a vida do meu avô.

Neste ano, ele completaria seus 87 anos. Na contagem japonesa, seriam seus 88 anos, idade em que se comemora o “tookachi” ou “missão comprida”, de acordo com as tradições okinawanas. Apesar de não termos conseguido comemorar esse rito, tenho certeza de que ele cumpriu sua missão, seja como pai, avô, imigrante ou nipo-brasileiro.

Finalmente, olhando para esse texto e percebendo como minha trajetória está profundamente conectada com a minha ascendência okinawana, desejo aprender e vivenciar os provérbios de Ryukyu, para que, com a completa compreensão, possa transmitir toda a cultura desse povo junto do Okinawa Kenjinkai de Curitiba.

Uma das últimas descobertas sobre meu avô Shinichi foi que ele, quando jovem, dançava a famosa canção “kagiyadefu bushi”. Espero aprender esta dança em breve, quando já estiver em Okinawa, como forma de herdar a cultura do meu avô.

Gabriel Yuji [Kuniyoshi] Nakashima
Curitiba, março de 2020.