Trajetória dos Uesu – Okinawa
Jorge Uesu e Tereza Uechi
Okinawa. É uma ilha de origem vulcânica a cerca de 500 km ao Sul do Japão, com a população atual em torno de um milhão e quatrocentos mil habitantes.
A superfície é de 1.207 km², com cerca de 110 km de comprimento por 11 km de largura. O Paraná comparativamente tem 199.215 km². Por ter terreno acidentado a área cultivável é ínfima, agravado pelo fato de as bases americanas lá estacionadas, por estratégicas, ocupam as melhores terras, mais planas. Por ser uma ilha semitropical, mar esmeralda, atraem principalmente os turistas japoneses que procuram fugir do rigoroso inverno. Portanto o turismo é a principal fonte de renda na atualidade. Mas desde tempos remotos, a fome sempre assolou esse povo, motivadas pela escassez na produção do arroz, impostos escorchantes por parte do governo central, intempéries, provocando muitas vezes revoltas populares. A produção de cana de açúcar que estava sendo uma nova fonte de riqueza para os ilhéus, sofreu um baque quando a vizinha Taiwan, com área muito maior que Okinawa, começou a produção desta cultura em escalas cada vez maiores, derrubando o preço da cana, ocorrendo assim uma catástrofe em Okinawa, com quebra de bancos e fechamento de muitos comércios.
Foi devido a uma dessas crises, como pano de fundo, para que, Jiro Uesu, então com menos de 13 anos embarcasse no navio Santos Maru juntamente com a família do irmão mais velho, rumo ao Brasil. Para quem era obrigado a comer qualquer coisa rastejante para não morrer de inanição, ir para um país onde se dizia que o indivíduo podia se sentar debaixo de uma bananeira e comer bananas à vontade, de graça, era um sonho arrebatador. Isso foi em 1939, onde foram morar na cidade portuária de Santos.
Em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, o governo de Getúlio Vargas baixou um decreto obrigando japoneses, alemães e italianos a saírem do litoral num prazo de 24 horas. Os japoneses eram os mais visados porque carimbados estavam nos seus rostos, os seus traços orientais, mais fácil de serem reconhecidos. Acusações esdrúxulas de espionagem lhes eram impostas, como por exemplo, de que sinalizavam com lanternas em código Morse aos submarinos japoneses.
Como se isso não bastasse, ocorriam ações arbitrárias de policiais, talvez bandidos travestidos de policiais que confiscavam de tudo, até porcos, com a condescendência das autoridades.
Quando terminou a guerra algo impensável ocorreu dentro da colônia. Devido à falta de comunicação, pelo fato de o governo proibir a impressão de jornais em língua japonesa, surgiram diferentes versões sobre o resultado da guerra. Inclusive espalharam panfletos grosseiramente impressos e adulterados, mostrando um general americano segurando uma caneta assinando o termo de rendição, quando na realidade, na foto oficial, é o Ministro das Relações Exteriores do Japão que faz esse papel, a bordo do navio americano US Missouri. Com os ânimos exaltados, instalou-se a cizânia dentro da colônia. Uns defendiam que os japoneses foram vencedores, os katigumi, e os mais esclarecidos que admitiam a derrota, os makegumi. Com o correr do tempo essas divergências foram se acentuando, surgindo facções de fanáticos terroristas, denominados Shindô Renmei, que chegaram aos extremos de assassinar patrícios renitentes. Com esse movimento espalhando pelo estado de São Paulo e do Paraná o governo foi obrigado a intervir nessa absurda luta fratricida prendendo centenas de militantes, enviados para a prisão de Ilha Grande.
Não faltaram aproveitadores que vendiam passagens de navios que viriam repatriar todos os japoneses por ordem de Sua Majestade. Muitos crédulos desfizeram de seus bens a preços vis, para embarcar nesses navios fantasmas.
Jiro Uesu acompanhou a família de seus tios para São Paulo. Quando fez 24 anos foi apresentado a Kameco Kuniyoshi, de Cambará Pr e casaram-se na forma de "miai" (casamento arranjado através de intermediários ou padrinhos). Jiro Uesu, cresceu, viveu sua adolescência e chegou na fase adulta sempre em uma metrópole. Fotos antigas comprovam que estava adaptado aos hábitos e costumes brasileiros. Paramentado como marinheiro, com chapéu, camisa listrada e calça branca, juntamente com seus amigos, não deixam margens de dúvidas que era adepto do carnaval. Ele e seus amigos também não deixavam de frequentar a praia, visíveis nas fotos, todos e trajes de banho. Para começar a vida na lavoura, seu sogro lhe emprestou certa quantia para plantar feijão, milho, etc. Ao mudar de cidade para a zona rural para pegar na enxada e trabalhar na cultura do café, com certeza foi uma inversão no seu modo de vida, podendo-se imaginar que não iria terminar o resto dos seus dias como lavrador. Segundo relatos da esposa, seu sonho mesmo era morar novamente na cidade.
O dia 3 de março de 1950 parecia mais um dia qualquer, quando Jiro se preparava para ir a um outro sítio próximo que acabara de adquirir. Naquele dia, mais uma vez, sua esposa fazia advertências quanto aos malefícios do cigarro, pedindo para que ele abandonasse esse vício. Foram motivos para altercações entre o casal, antes dele partir para mais uma jornada de trabalho.
Horas depois, o sossego foi rompido quando vieram avisar a Kameco que Jiro havia desfalecido dentro de um poço que estava sendo perfurado dentro de sua propriedade por um poceiro contratado da cidade. A tragédia deu início quando num dado momento o poceiro gritou que estava passando mal. Sendo responsável pelo homem, irrefletidamente, com a ajuda de terceiros, Jiro desceu para resgatar a vítima. Quando quase Jiro emergia com o corpo na boca do poço, não suportou e caíram novamente ao fundo. Só com a chegada do socorro da cidade os dois corpos foram içados, já sem vidas. Nunca se soube o que havia naquele poço. Alguns opinaram que era um gás que brotava da terra. Nessa época o casal tinha 3 filhos, a Tereza com 5 anos, Jorge com 3 anos e a Júlia com 1 ano. No dia 9 de julho de 50 nasceu a caçula Lídia. A Tereza, por ser a mais velha, assumiu os pequenos trabalhos. Kameco, por algum tempo, tinha certeza de que aquilo fora apenas um sonho, tinha impressão de que a qualquer momento ele iria voltar, e que o liberaria de seu prazeroso vício do fumo. Quando caiu na realidade, veio a determinação de criar os filhos a qualquer custo. Resistiu à ideia de doação, mesmo quando passava noites em claro cuidando dos filhos em estado febris, mesmo imaginando que o pior poderia acontecer. Como já não valia à pena só o seu trabalho braçal no pequeno sítio onde tinha pouco rendimento, resolveu aprender o ofício de costureira. Mas o tempo ia passando e a escola brasileira já não oferecia condições para dar prosseguimento aos estudos dos filhos. Como não existia nenhum meio de comunicação e informação no sítio, nem mesmo um rádio, ela assinava uma revista mensal japonesa para crianças que chegava com 3 meses de atraso, mas de conteúdo cultural riquíssimo de assuntos variados, inclusive mangás, termo ainda não introduzido no vocabulário brasileiro de então. Essa revista, foi o único meio de saber da existência de outros mundos, de outros povos, de modo que essas crianças se adiantaram em muitos aspectos, como por exemplo que existia no calendário, um dia especial, o Natal. A colônia japonesa que só festejava o Ano Novo, ou não sabia, ou ignorava esta data máxima da cristandade. Melhor ainda, os irmãos puderam alimentar uma fantasia por muitos anos, o personagem do Papai Noel, que ao descobrir a humilde casa dos Uesu passou a deixar presentes nas meias penduradas na cabeceira da cama. O que valia não eram os presentes em si, que o nosso papai Noel pelo jeito era pobre, mas sim o clima criado pela mãe ao comprar uma vitrola movida à manivela em São Paulo, quando foi visitar o pai adoecido. Comprou aleatoriamente uma miscelânea de discos de rotação 78, com as músicas de Misora Hibari, Hino Nacional, cantores brasileiros. Naturalmente, o que mais agradavam as crianças eram as músicas natalinas cantadas em japonês e uma especial a que falava em Santa Kuroosu, que depois soubemos que era Santa Klaus, o papai Noel, de outros países. Todos os irmãos concordam que essa revista foi de fundamental importância na visão de vida que temos hoje. Como o ensino no sítio era até o 3° ano primário, a Tereza foi continuar os estudos morando num internato japonês, seguido pelo Jorge no ano seguinte, mas sempre voltando para casa nos finais de semana. Numa manhã fria de inverno, com as crianças reunidas à beira do fogão, ela fez uma pergunta inesperada: vamos todos mudar definitivamente para a cidade? Pegos de surpresa não responderam de imediato. O Jorge olhava pela janela da cozinha onde descortinava a paisagem onde sempre viveu, onde feliz era sua infância, nunca passou lhe pela cabeça sair desse lugarejo. Respondeu que preferia ficar, no que suas irmãs concordaram. Porém Kameco já tinha tudo planejado, independente da opinião das crianças, mudaria o rumo dos seus destinos. Alugou uma casinha de madeira em Cambará, onde tinha apenas um fogão à lenha. Alguns móveis eram da mudança. Aquela cama de mola e colchão de palha onde dormiam a mãe e as quatro crianças ficou para trás, restando as lembranças do móvel que serviam de pula-pula. O Jorge, matriculado no grupo escolar, não acostumado com a rotina, com tantas crianças em volta fazendo algazarras, ficava num canto até bater o sinal anunciando o fim do recreio. Muitas crianças vendo aquele caipirinha parado, com o boné enterrado na cabeça, era motivo para provocações e divertimento, ao arrancar o seu boné. Mas a bondade e o carinho de dona Miriam, foram suficientes para derrubar as barreiras da timidez. Assim transcorriam dias, meses, anos, a dona Kameco, depois cognominada dona Maria, a costureira, foi ganhando fama chegando a costurar roupas de crianças, calças de homem, vestidos de mulher, roupas de noiva, não faltando encomenda de batina de padre. Dona Maria trabalhava sem demonstrar cansaço, às vezes atravessando madrugadas para entregar as encomendas a tempo. Os anos passam, e vem um novo desafio para dona Maria. Como Cambará não tinha o curso científico, fez seus cálculos e achou que daria para sustentar os estudos do Jorge então com 14 anos em Curitiba onde se encontrava um primo. E desta forma sustentou os estudos do filho por 10 anos, até sua formação em Medicina. Naquela época ainda era comum a ideia de que às meninas bastavam fazer o curso Normal para tornarem-se professoras do primário. Mas dona Maria, sempre à frente do seu tempo, queria mais, deu um jeito e fez com que as três filhas concluíssem o curso superior na cidade vizinha de Jacarezinho. Todos formados, gozou a aposentadoria cercada de netos, e boa parte do tempo assistia no seu canal NHK, programas japoneses onde com frequência mostrava anciãos de mais de 100 anos, vivendo com saúde. Inspirada nesses fatos repetia que também atingiria a marca centenária. Certo dia fez a sua caminhada diária, jantou normalmente. De madrugada a Tereza ouviu ruídos estranhos vindo do quarto da mãe, quando a encontrou em estado crítico. Foi acionada a ambulância que a levou ao hospital. Antes de ser levada, já moribunda, ouviu do Jorge "vai ficar tudo bem, viu okassan ", foi quando ela abriu os olhos, olhando fixamente para o filho, sem palavras. Esta imagem, de algum significado que leva a interpretações diversas, marcará para sempre como sendo adeus para a vida. Faleceu nesse mesmo dia aos 89 anos. A data, 20 de outubro de 2011